Maria João Worm


O que aprendi com o Bambi
23 Junho 2015, 11:32 pm
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cadela

Apareceu à porta de casa pela mão de alguém a quem estimo. Um cão pequeno, castanho sem nada de especial a não ser ser ele de facto inteiramente assim. Não sei se sabem ou já vos aconteceu serem tocados pelo que no que aparenta vulgaridade ser apenas o início. Podes ficar com ele? veio atrás de mim e dos cães que tenho? Pode ter sido abandonado. Eu já tenho dois e um deles é agressivo com ele.

Sim. Como nos casamentos, sim por que sim, porque por dentro está certo. Porque se celebra a palavra, Agora.

E então quem é esta pessoinha, vestida em forma de cão, mais pequena de tamanho do que tenho em memória ter amado? Pois é uma vida de olhos limpos, que fala pondo o rosto de lado, pergunta e é atento.

Não queria proximidade, eu quero. Lá mais para o fim da noite falámos. Sim, continuava o sim.  Consegui dar e receber um abraço. Um beijo, claro há sempre um beijo a marcar uma passagem. Que bom o coração a cantar. No dia seguinte acordei cedo. Fomos falando. Senti-me inteira, acho que me senti bem.

Voltei ao lugar onde o cão se tinha perdido, onde a minha amiga o tinha encontrado. Um grupo de pessoas de repente falou: esse é o Bambi não é? Eu disse que sim deveria ser, expliquei o que tinha acontecido.

Temos medo que nos morda, o dono tem muita idade chorou toda a noite por ele. Eu dei tudo o que tinha naquele momento. A trela improvisada a acompanhar o peitoral vermelho, grande demais para um cão tão pequeno.

Não acompanhei mais nada, não disse que ìa com eles para ver o reencontro. Disseram-me olha ele parece que quer ficar consigo. Sim, olhámo-nos ele com trela eu por que a dei a outros. Dissemos então demasiado. Seguimos caminho em direcção contrária. Ainda perguntei se poderia saber dele, que sim que todos os dias passeia no jardim.

Não seria uma boa ideia pensarmos que os cães podem escolher com quem querem viver?

Nunca tinha pensado assim. Desta forma. Sim, o cão, o Bambi, poderia ter procurado viver de outro modo, poderia ter saído para viver.

Assim aprendi com ele.

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logo se vê
19 Junho 2015, 7:24 pm
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mancha

 

Tinha-me dito que nunca mais deveria escrever sobre coisas tristes.

A tristeza sabemo-la todos. É um lugar que convida à permanência, uma casinha remendada, pronta a habitar, apta a não construir mais nada a não ser andares iguais, com vista amplamente dirigida para a única mancha de humidade na parede.

Embora cada vez mais sinta que ao não fazer, sendo a forma mais difícil, possa deste modo aceder ao que parece mais incorruptível.

Tinha-me dito que deveria só falar depois de reflectir. Depois de ter um modo claro, ou pelo menos mais esclarecido, para então agir segundo o para lá da escuridão.

E não havendo nada para dizer, manter-me simplesmente no silêncio, com a paciência de um apicultor, mas com a exposição do corpo de uma lesma.

Mas vi uma mancha de luz sentada nuns degraus, a descansar, embora não tenha a certeza se de facto não seria a sombra que a prendia.

No jardim vi rostos de mulheres nos troncos das árvores mais distantes enquanto o verde, varejeiro e natural, com uma breve verdade as respirava.

Troncos bulbosos com crescências, torções que se enforcavam a si próprias, como por vezes nos aparece descrito numa vinha.

Tentei lembrar-me de palavras onde, eu tal como a luz, pudesse descansar, mas a voz respondeu-me vinda dos veios do chão, directamente das lajes empedradas.

Chão humano, de pequenos túmulos justapostos, poços secos e porosos, tapando um fundo ainda vivo como as estrelas.

 

– Afinal não tínhamos combinado que aceder a um encantamento ou a uma música que se sabe pela letra, não é uma questão de aprender um movimento, repetir a mesma cadência e o sibilar. 

É o silêncio.

Depois logo se vê.

 

 



180 graus
13 Junho 2015, 9:21 pm
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a nuvem verde

No céu uma nuvem verde.

 

o homem verde

 

Na terra o homem verde.



É na solidão que reconhecemos o que nos foi dado por outros.
6 Junho 2015, 5:33 pm
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criança4

 

Impressiona-me que tudo se queime em azul. Azul é a cor da sombra, da matéria exposta. A ilusão do céu cientifico, um filtro, a aparência.

Dentro das veias azuladas passa o sangue vermelho. Assim é estar vivo. O que fabricamos não está vivo, por isso sujeita-se a ser queimado pelo sol. Assim o trabalho rasga-se, denuncia-se, por ser tecido.

Pressão, impressão, expressão. Calcar, calcanhar: movimento e peso. Corpo, vida. Grafia, fotografia. É impressionante existir. Conversamos pela ciência da luz que regista a descrição da superfície de uma imagem. Na consciência do corpo vivo e sensível vai-se gravando a passagem do tempo.

A tosse é a rejeição do excesso. Cada corpo contém a medida certa do seu ir sendo, é demasiado simples. Há uma necessidade e uma idade. Gesto e gestualidade. Conversa, comunicação.

Existir é não ser preciso dizer que se está vivo. Mas conhecer é sair do lugar de estar agora aqui: viajar, desejo de arabesco, circo, confronto.

Heraclito e Parménides. Entre os dois um rio.