Maria João Worm


Clave só
31 Agosto 2016, 11:51 pm
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ideia_de_chave

Mesmo que seja para ser possível escutarem-se a si próprios, dizem que na cidade os pardais cantam mais alto para se poderem ouvir uns aos outros.

Albertina tinha duas irmãs. O destino colocara-a entre as outras. Nunca soubera o que era ser a primeira, mas soubera o que era ser a mais recente na vida. Nunca pôde saber o que era ser a única, mas soube o que é deixar de ser a mais nova mal a Elzira nasceu. Embora se mantivesse o seu lugar na grande árvore genealógica, ensombrou-se com o galho imprevisto que  aconteceu traiçoeiro. Fez disso aprendizagem para não encontrar certeza em nada. -Que desconfiada és Albertina!- Olha que quem é desconfiado não é certo. Talvez. Talvez sim, talvez não. Nunca se sabe as voltas que a vida dá e temos que ter os olhos abertos à defesa do que provem do lugar onde tudo começa.

Albertina aprendeu muito depressa os números e assim como sabia somar também subtraía com igual repente. Já dividir era mais difícil mas também é compreensível e multiplicar é coisa de empresa milagreira. Com o custo que se sabe.

Albertina voltou a ser a mais nova das irmãs no dia em que Elzira morreu. A conta apresentava-se certa 3-1=2. O galho mantinha-se no desenho histórico, mas não no organograma da função dos vivos.

Embora enquanto agonizava em febre, Elzira mantivesse a multiplicação de elogios, nunca deixou em vida de ser a mais recente das irmãs.Todos se ensurdeciam da fé que lembra as flores que morrem apesar de mil cuidados. Só Albertina sentia culpa. E de facto a irmã morria segundo o desejo que sentira mal ela nascera. Mas reconhecia-lhe a capacidade de agradar no gesto mais simples, como quando chorava ao ver o que parecia não existir antes de ela o apontar.

Ao morrer coube o momento a Albertina estar por perto de Elvira. A outra na cama absorvida na almofada, febre alta, convulsões azuis, veias, medo de olhos a rodar. Água por favor. Depois já sem pedir nada e a só querer falar muito. Dizer o que se tinha passado, o que gostara mais e menos, tudo em seguida. Segurar a mão que por ali estivesse e ser de igual modo para todos, sangue igual da mesma sorte diz a leitura de se estar vivo.

Nessa tarde em que a mãe descansava de não ter dormido de noite e o pai fora para onde costumava ir sem se lhe perguntar, Elvira de olhos brilhantes, a adivinhar o contrário, quis sussurrar a Albertina, umas que seriam as suas últimas palavras. Albertina aproximou-se cuidadosa, com algum nojo de contágio e piedade impossível. Balbuciou Elvira na voz encriptada dos que pousam entre os mundos. Mais para dentro que para fora. Uma frase muito curta.

Albertina pediu que repetisse, pois não tinha conseguido ouvir as palavras que em esforço a irmã dizia com o corpo todo na boca a resvalar. Mas dela não se ouviu mais nada.

A seguir, ou durante o momento entre as coisas, morreu. Sem convulsões, sem estrebuchar, sem luzes a entrarem no quarto para lhe transportarem a alma.

A mão dada descolou-se para o lugar dos vivos. Ouviu-se um silêncio sem choro. Depois olhou sem conseguir, com os olhos rasos de vazio. Insistiu e estranhou o corpo, a indiferença de estar viva.

-Acho que ela me pedia desculpa, ou me desculpava a mim- E assim ficou Albertina a repetir-se, sentada ao lado da morta..

 

 

 

 

 

 

 

 



que preciosa ès
7 Agosto 2016, 7:20 pm
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4_portasEnquanto nascia Maribel morria a sua mãe, levando assim consigo o que se sabia do pai.

Os mais gaiatos e os que não sabem de outra maneira, diziam que a Dona Mariazinha tinha morrido de susto. E olhavam de lado, confiantes de terem graça, sem darem conta da sombra das árvores, fresca e séria, de onde se lhes fitava o até que ponto é que se brinca com a morte.

Ora uma criatura de Deus, mesmo que feita à imagem do desastre, existe e é preciso ter piedade. Foi assim a menina criada para servir. E não fosse só o aspecto causa suficiente para a tornar diferente, coube-lhe um desmiolamento descarado que a trazia feliz todos os dias.

Antes assim-diziam as mulheres-Não sabe que aberração é. Diziam aliviadas de não serem como ela, por poderem exercer a bondade envenenada com que se matam as mulheres tristes.

As mulheres tinham acordado entre elas condenar Maribel a ser a mais feia e tonta. Todas saíriam em vantagem quando comparadas com ela.

Aos homens não foi pedido que participassem nesta avaliação. Eles, mesmo que evitassem olhar para Maribel, sentiam uma constante repugnância curiosa, aquele incómodo inquietante dos dias de Verão desocupados.

Mas se fossem consultados pontualmente, confirmavam a extrema feiúra de Maribel, a contrastar com a inequívoca beleza das mulheres e em particular acrescentariam a da sua consorte, fosse esse o caso.

-Se tens que o fazer, fá-lo bem feito!-dizia o velho que já não fazia mas havia feito.

À medida que ìa crescendo, acentuava-se no seu corpo a tendência de contrariar o que fora convencionado ser belo. As vozes piedosas abanavam a cabeça, sussurrando-coitadinha-, logo que a viam passar, muito feia e sorridente, a olhar para o que está atrás das coisas construídas. Um sorriso largo com gengivas e saliva aos cantos. E uma predisposição para o bem que preocupava o Sr Padre e todas as senhoras igualmente de bem, que bem ou mal, sabem um pouco de tudo e se regem pelos costumes onde penduram a roupa suja dos outros.

Maribel apreciava a luz. Por entre as folhagens, a tremeluzir na água, em pequenos brilhos espalhados no chão de pedra, nos vidros e no vitral colorido da casa do Conde del Bosque.

É certo que quando Maribel começou a limpar a casa do Sr Conde todas as quartas-feiras parecia ter encontrado um propósito consensual. E essa trégua de silêncio foi apenas tempo cumulativo onde germinava o que viria a seguir.

Bem visto, o casarão era grande e mesmo com toda a entrega de um dia inteiro a varrer o pó e a esfregar o chão, pareceu ao Conde que descobria agora o quanto necessitava de viver num ambiente limpo, pouco tempo. Assim Maribel passou a ir segunda, quarta e sexta-feira. Quanto mais limpa a casa ficava, mais sujas as conversas de quem se punha a adivinhar o que se passava dentro do casarão.

A pouca vergonha do Paraíso era intolerável. E o mau exemplo para os jovens e afinal quando é que o Padre vai falar com o Conde.

Não sei o que se passava dentro de casa. De facto Maribel apareceu com um vestido novo, foi vista com um lindo lenço de seda que pertencera à Condessa,  continuava a sorrir e já indo isto tudo em ano e meio, nada de engravidar.

Quando Maribel se mudou para a casa do Conde del Bosque ninguém estranhou. No saco pequeno onde juntou o que tinha, ìa uma caixa com pedrinhas, daquelas que brilham com a luz. Mais tarde o Conde disse-lhe que eram pedras preciosas.

Mas dizem que tudo isto aconteceu porque o Conde via muito mal.